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Crítica: “Detroit”

Crítica: “Detroit”

No auge das tensões raciais da década de 60, o filme é um retrato intenso sobre o homicídio de três jovens negros no verão norte-americano de 1967. É no Algiers Motel que “Detroit” se eleva e se perde, revelando a sua verdadeira intenção: mostrar nada mais do que uma experiência, sem perguntas a colocar. Estreia dia 14 de Setembro, quinta-feira.

Num bar ilegal, dezenas de afro-americanos regressam a Detroit, Michigan, depois uma missão no Vietname. Num poster pode ler-se “no vietnamese ever called me nigger”. Pela noite dentro, uma rusga irrompe o clima e organiza uma linha de detenção nas ruas. Cá fora, quem passa, para e revolta-se. Atiram-se palavras e soltam-se pedras. Afro-americanos e forças polícias dissolvem-se e a violência do “12th Street Riot” é copiada em outros bairros.

O tumulto social dura 5 dias, sendo até hoje um dos mais sangrentos do país, com 43 mortos e mais de 1000 feridos e edifícios destruídos. Cerca de 47% da população de Detroit era afro-americana e apesar da indústria automóvel ter nivelado a diferença salarial, os bairros continuam segregados e sobre lotados. A promessa de novas oportunidades e igualdade é afinal uma ilusão.

Assinalam-se 50 anos do evento e Kathryn Bigelow traz-nos “Detroit”- e com ela, Mark Boal– juntos acumularam 6 Óscares em “Estado de Guerra”.

Em “Detroit” transpira o racismo e tensão da década de 60, ainda assim, é na noite de terror de 25 de Julho, no Algiers Motel, que o filme dirige a sua atenção. O espaço testemunhou a execução a sangue frio de 3 adolescentes negros e estampou capas de jornais e redes de televisão.

O filme assenta num extenso elenco cujas vidas das personagens mudam para sempre em 5 dias. Melvin Dismukes (John Boyega) é um simples segurança privado contratado para proteger a mercearia numa noite de possíveis saqueamentos, Larry Reed (Algee Smith) é o sonhador vocalista da ainda não- emergente banda de R&B, The Dramatics. Está prestes a actuar numa abundante sala de espectáculos onde brancos e negros dançam ao ritmo de Motown sound.

Fred Temple (Jacob Latimore) é o assistente do grupo e o seu maior encorajador. Tem de atravessar freneticamente pelas fileiras da polícia para não chegar atrasado. Mal sabe que chegue ou não a tempo, o resultado é o mesmo. Já Philip Krauss (Will Poulter), agente policial, é a personificação do racismo e da supremacia branca, quebrando códigos de conduta e abatendo cobardemente alvos pelas costas.

Dismukes tem dois empregos é o único negro com alguma influência suficiente para navegar pelas duas frentes, enquanto Julie e Karen parecem ter fugido de Ohio, agora são prostitutas e estão sem dinheiro.

Por diferentes razões, todos vão colidir no mesmo local: Algiers Motel. Chega a noite de 25 de julho. É num hall de entrada, que durante mais de 40 minutos, se concentra toda a violência física, sexual e psicológica, a manifestação de todos estereótipos perpetuados pela polícia de Detroit na classe média negra.

Bigelow é experiente em cenas de acção, no seu currículo tem “Estado de Guerra” e “00:30 A Hora Negra”, e por isso, não oculta os jogos de violência que ocorreram naquela noite. A intimidação bate à porta, voltam suspeitos de costas, sussurram-se ameaças, espancam-se inocentes e jorra-se sangue e mais sangue à espera de uma confissão.

Há corpos no chão. A energia acumula-se. Está a rebentar pelas costuras e qualquer movimento informa o espectador de que “é agora”. Antes de se encontrarem, as personagens são apresentadas em fragmentos e aí parecem respirar. Mas a verdade é que todas elas se sufocam na combustão do infame motel.

Ninguém se revela num evento extremo como este. Afinal, o que conhecemos dos protagonistas não eram afinal as suas potencialidades, mas as suas limitações.

O filme recusa-se, de tal forma, a fechar os olhos ao que aconteceu, que se esquece por completo de dar carne e osso às personagens atormentadas. Ali perderam nome e motivações, não pelas atrocidades e tratamento igualmente desumano que mereceram pelos polícias, mas pela vazia caraterização de Mark Boal. Percebe-se que, afinal, no epicentro da violência poderiam estar outras pessoas, outro contexto socioeconómico, que o filme seria o mesmo.

Mas a culpa também chega à fotografia de Barry Ackroyd. Apesar de adequado no início da história, o uso frenético da câmara em movimento torna-se abusivo, sobretudo quando aplicado em cenas que pedem silêncio e intimidade. Voltamos a deixar de curar o interior das personagens.

Sem muitas mais datas de estreia, “Detroit” é um flop comercial. Mas merece ser mostrado, visto e revisto pela sua atualidade. Numa altura em que se fala tanto das tensões raciais nos EUA, o filme demonstra, apesar de tudo, alguns paralelismos com a realidade.

A polícia norte-americana (invoca-se muito o law and order”) porta-se como qualquer grupo que vê algo retirado por um outro: reacionário, desinformado. Tal como hoje, atiram-se e abatem-se alvos claramente desarmados.  O sistema continua a oprimir os negros e a beneficiar a classe policial branca. A cultura do medo continua de boa saúde.

Ainda assim, é impossível não sair do filme sem uma tamanha desilusão. Na última meia hora, perde-se todo o gás com um resumo de imagens reais dos acontecimentos e capas dos jornais e cenas em tribunal sem qualquer peso dramático.

No fundo, o filme falha em retratar Detroit como personagem, ainda hoje uma das cidades mais violenta dos EUA e que continua a braços com problemas de renda social e pobreza. “Detroit”, o filme, deixa-nos de coração de apertado. Se nos submete a uma experiência violenta, a verdade é que se demite de um comentário social, de reflexão.

Deixa-nos a pensar que em 50 anos, e em plena administração Trump, muita coisa permanece igual. Se não almeja extrapolar limites, para que serve afinal a experiência que mostra aquilo que já sabemos?

Nota final para a música “It Ain’t Fair” dos The Roots com Bilal. Vai querer ficar sentado a ouvir durante os créditos.

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