Detroit: Become Human, o mais recente trabalho da Quantic Dream em exclusivo para a PlayStation 4, baseado numa tech demo de nome Kara e produzida pelo estúdio em 2012, surge com a árdua tarefa de deixar de agradar a apenas um nicho de jogadores.
Na industria dos videojogos, o drama interactivo ou filme interactivo é um dos géneros que mais opiniões divide, uma vez que os títulos que fazem parte do mesmo adoptam como seu maior trunfo a experiência centrada numa narrativa profunda, na grande maioria dos casos ramificada, em detrimento da jogabilidade, sendo a mesma minimalista e colocada em segundo plano. São títulos nos quais a progressão ocorre, principalmente através de opções de diálogo com as restantes personagens e onde as acções executadas pelo jogador envolvem um simples pressionar do botão, um movimento do analógico ou os tão conhecidos e infames, para alguns, quick time events (QTE).
Se existe quem considere estes títulos como verdadeiras experiências cinematográficas, com as quais é possível interagir, adequadas ao jogador mais casual e também como uma oportunidade de introduzir no meio quem não tem por hábito jogar videojogos, há também quem as veja como experiências direccionadas para um nicho de jogadores e irrelevantes para aqueles que são hardcore, visto que a jogabilidade das mesmas, um dos aspectos mais importantes de qualquer videojogo, é quase sempre minimalista e pouco inovadora.
Foi em 2005, com o lançamento de Fahrenheit, que a Quantic Dream iniciou a produção de títulos do género, mas só passaria a ser considerada como o estúdio pioneiro no desenvolvimento de dramas interactivos em 2010, quando fez chegar aclamado Heavy Rain em exclusivo à PlayStation 3. Seguiu-se Beyond: Two Souls em 2013, novamente em exclusivo para a máquina da Sony e que apesar de contar com um elenco de luxo, com Ellen Page e Willem Dafoe nos papeis principais, acabou por não superar as expectativas que eram elevadas, devido ao sucesso e qualidade de Heavy Rain.
Outros estúdios seguiram as pisadas da Quantic Dream e desenvolveram diversos títulos do género, sendo a Telltale Games o caso mais conhecido, visto que produziu vários dramas interactivos sobre as mais variadas e conhecidas licenças, como The Walking Dead, Game of Thrones e Batman.
Assim, nos anos mais recentes, a indústria acabou por ficar saturada de jogos do género e os mesmos, apesar de oferecerem narrativas competentes, continuaram a disponibilizar uma jogabilidade minimalista e pouco inovadora, mantendo a incapacidade de captar a atenção dos jogadores mais hardcore.
É neste contexto que surge Detroit: Become Human, o mais recente trabalho da Quantic Dream em exclusivo para a PlayStation 4, baseado numa tech demo de nome Kara e produzida pelo estúdio em 2012, com a árdua tarefa de deixar de agradar apenas a um nicho de jogadores.
Como o nome indica, este título da Quantic Dream transporta o jogador para uma Detroit futurista, mais em concreto no ano de 2038, onde os andróides existem para realizar as mais diversas funções que anteriormente eram desempenhadas por humanos. É este o ponto de partida para o desenvolvimento da narrativa escrita por David Cage, fundador e escritor da Quantic Dream, em Detroit: Become Human, uma vez que existem humanos que vêem os andróides como uma necessidade básica e outros que os consideram uma ameaça, seja por terem sido prejudicados pela chegada dos mesmos, como a perda de um posto de trabalho para um andróide, ou por algum outro motivo mais particular, mostrando desde bem cedo que a frágil relação entre ambos é o seu ponto central, principalmente quando alguns andróides começam a “divergir”; ganhando consciência e emoções.
Em Detroit: Become Human, à semelhança do que já havia acontecido em Heavy Rain, o jogador controla várias personagens, neste caso três andróides inseridos em contextos distintos e variando entre os mesmos ao longo dos diversos capítulos.
O primeiro capitulo dá a conhecer Connor, um andróide enviado pela CyberLife, empresa que lidera mundialmente o fabrico de andróides, para auxiliar a policia de Detroit na investigação de casos que envolvam andróides divergentes. Outra das personagens é o andróide Markus, que tem como função cuidar de Carl Manfred, um famoso pintor, sendo desde logo perceptível que os dois têm uma relação bastante próxima, onde o último trata o andróide como um verdadeiro ser humano, transmitindo-lhe os mais diversos valores, ensinando-o a pintar e sensibilizando-o para as coisas verdadeiramente importantes da vida, permitindo que o mesmo possa “ver” para além da sua programação. Em último lugar, temos Kara, que apesar de também ser um andróide programado para servir o ser humano em tarefas domésticas, é colocada num contexto totalmente diferente de Markus, uma vez que serve Todd Williams, um homem violento e imprevisível, e a sua filha, Alice.
É com base nestas premissas que se inicia o desenvolvimento de cada uma das personagens, percorrendo situações e caminhos totalmente distintos.
No caso de Connor, estamos perante uma personagem que está programada para cumprir a sua missão a todo o custo, mas que ao ser confrontado com a necessidade de se relacionar e cooperar com humanos, sendo a evolução da sua relação com o tenente Hank Anderson (interpretado pelo conhecido Clancy Brown) um dos pontos mais fortes de Detroit: Become Human, bem como ter que capturar outros andróides, passar a ter a porta aberta para a ramificação da sua narrativa e evolução enquanto personagem, consoante as escolhas de cada jogador. Das três histórias, aquela que senti com maior carga emocional, maior dificuldade no momento de decisão e com a qual mais me identifiquei, tendo contribuído muito para isso a relação que tinha com o seu proprietário, foi a de Markus, que após divergir segue o caminho de líder revolucionário com o intuito de conquistar a liberdade de todos os andróides, cabendo ao jogador a decisão de como levar a cabo essa revolução e, por conseguinte, a postura do mesmo em relação aos humanos.
Já Kara, ao ganhar consciência, passa a ter como objectivo a protecção de Alice e a procura de um lugar seguro para ambas, sendo a narrativa desta personagem e o seu desenvolvimento aquela que reúne a maioria dos pontos negativos. Se inicialmente Kara é apresentada como uma personagem destemida, rapidamente é tornada numa personagem bastante vulnerável, cuja história assenta numa constante busca por protecção e onde as decisões por nós tomadas são quase sempre de carácter moral básico ou de confiar ou não em terceiros, reforçando mais uma vez, depois de Madison em Heavy Rain e Jodie em Beyond: Two Souls, que a escrita e desenvolvimento de personagens femininas não são o forte de David Cage. Em último lugar, Alice, personagem central da história de Kara e com quem a mesma mais interage, é uma das crianças mais desinteressantes a marcar presença em videojogos. Definitivamente que Ellie, de The Last of Us, e o mais recente Atreus, em God of War, nos deixaram mal habituados.
Ainda que com alguns pontos negativos, como os referidos anteriormente em relação à história de Kara, toda a narrativa é suficientemente interessante para manter o jogador investido atá ao final, seja por abordar temas bastante actuais mas inseridos num futuro e no contexto dos andróides, como segregação racial, violência, guerra, suicídio, descriminação, entre outros, mas também devido à dimensão da sua ramificação.
Em Detroit: Become Human estamos perante um dos expoentes máximos de narrativa ramificada, onde as decisões e acções do jogador tem uma causa-efeito significante, chegando ao ponto de, consoante as mesmas, abrirem acesso a novos locais, a morte permanente de uma das personagens principais e, por conseguinte, diversos finais. No final de cada capitulo é apresentado um gráfico que mostra os diversos “caminhos” que são possíveis de tomar no mesmo e ainda que alguns sejam bastante lineares, a grande maioria deles são de enorme dimensão. No entanto esta dimensão da narrativa faz com que em determinados finais, alguns pontos centrais da mesma acabem por não ser explicados.
No aspecto da jogabilidade, o novo título da Quantic Dream continua a ser minimalista, através dos segmentos de pressionar determinado botão, movimentar o analógico ou até mesmo todo o DualShock em determinada direcção e, claro, os QTE.
Só nos capítulos de Connor é que existe lugar a inovação, uma vez que os mesmos inserem mecânicas de investigação, muito parecidas ao que já havíamos visto com a personagem de Norman Jayden em Heavy Rain, para que seja possível efectuar a reconstrução de cenas de crime, a lembrar Batman: Arkham Knight. Ainda que retirem elementos vistos em outros títulos, estes são sem dúvida os segmentos mais interessantes de Detroit: Become Human.
Relativamente ao processo criativo de Detroit, Gregorie Diaconu, director de jogo da Quantic Dream, referiu durante o evento de apresentação do jogo que a equipa quis recriar um mundo futurista, mas que não fosse muito distante do actual, visto que o ano de 2038 é “já amanhã” e definitivamente que conseguiram cumprir esse objectivo.
Visualmente, a cidade de Detroit é rica em elementos futuristas, mas também mantém vários elementos actuais, fazendo da mesma uma cidade futurista credível. O próprio aspecto visual dos andróides corrobora com essa pretensão, visto que a equipa optou por um visual humano para os mesmos, mantendo a diversidade de género e raça, sendo apenas os pequenos pormenores que os diferenciam dos humanos, bem como a indumentária que permite identificar a função de cada andróide na sociedade.
Ainda que sem surpresa, visto ser um dos campos no qual a Quantic Dream faz maior investimento, no departamento gráfico o destaque vai para a animação facial das personagens, uma vez que é eximia a representar as emoções durante os diálogos.
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Os títulos da Quantic Dream são também conhecidos por apresentarem uma grande qualidade no departamento sonoro e Detroit: Become Human não é excepção, já que a sua banda sonora conta com três compositores, cada um deles atribuído a cada uma das personagens principais.
A música de Connor foi composta por Nima Fakhrara, que utilizou sintetizadores antigos e instrumentos caseiros para produzir uma melodia electrónica, enquanto que com um tom mais sombrio, a música de Kara foi composta pelo violoncelista Philip Sheppard. Por último, John Paesano compôs a música orquestral de Markus, que, tal como acontece com as outras personagens, é completamente adequado à história do mesmo.
Ainda no aspecto sonoro, o trabalho de vozes é também de imensa qualidade, não só na sincronização com o movimento labial, mas também na representação das mais diversas emoções, com principal destaque para Bryan Dechart, que dá voz e corpo a Connor, que tem uma voz verdadeiramente cativante.
Na dobragem para português, temos José Mata a dar voz a Connor, Diogo Morgado a Markus e Victória Guerra a Kara. Ainda que tenha sido feita uma dobragem competente, sendo que a presença desta opção em qualquer videojogo é sempre de louvar, num título no qual o trabalho vocal é tão importante, a melhor opção será sempre jogá-lo na sua versão original.
Como é possível comprovar através desta análise, onde o título é alvo de um maior escrutínio sobre a sua narrativa, aparência audiovisual e onde a jogabilidade é verificada em segunda instância, Detroit: Become Human reúne, na sua grande maioria, pontos que o aproximam mais de uma experiência cinematográfica do que um videojogo, mantendo a impossibilidade de cativar os jogadores que olham para este género com alguma descrença.
Para os jogadores a quem o género agrada, é uma experiência obrigatória, porque olhando para outros títulos semelhantes, principalmente para os anteriores da Quantic Dream, é seguro dizer que a mesma atinge o pináculo do drama interactivo com Detroit: Become Human, apresentado uma narrativa densa, cativante e com a capacidade de abordar temas preocupantes do presente, inseridos num futuro pouco distante.